domingo, 19 de maio de 2024

O nome da coisa

 

O nome da coisa

 

Tirando aquela gente de pouca intimidade que a chama de parceira, colega, vizinha, até minha querida, quem a ama, pelos laços de sangue ou pelo açúcar passado sobre o muro, é essa gente que a conhece por Das Dores.

Caio e Dodô, os filhos de Maria, arriscam mãe ou mãezinha quando precisam de dinheiro ou de colo.

Já suas amadas maninhas, Dolores e Socorro, enchem a boca para o mãezona de coração de ouro quando a carteira de Das Dores dá leite à prole que a mama de paixão.

As titias também soltam o verbo quanto às trapalhadas de cama e mesa dos pimpolhos pais de família, pois Das Dores tem que aprender a curtir os bons conselhos de quem nasceu para irmãs do zap.

Das Dores não sai da comunidade porque família é tudo.

Quando não se encontra o botão para desligar-se das tristezas, das lágrimas de saudade, família é lenço à mão.

Quando a alegria é coraçãozinho à boca querendo morder primeiro, regozije-se, porque família é espetinho na brasa.

― Eu dou conta de tudo, Jô.

Jô é Joelma, cujo nome é homenagem ao avô que foi voluntário no incêndio do Edifício Joelma. Não é que ela tenha medo de fogo, só não gosta de fustigar cinzas; quando preciso, ela é a primeira a se oferecer para soprar o mertiolate em machucado de joelho.

Desnecessário dizer, por redundante, que a amicíssima Jô sempre aparece nos momentos menos prováveis, como se fosse movida pelo mundo por um sensor de iminentes catástrofes, bastante improváveis a quem tem a vida pautada por coisas comezinhas, como levar criança na escola, fuxicar e ver os tratores descendo a XV na contramão.

― Nossa, Jô! Já faz um ano que fomos à gruta de São Sebastião.

Neste penúltimo domingo de maio, antecipando-se à passagem dos agricultores que ocuparão a praça da Matriz para outra missa campal, ela vai cedo ao supermercado.

Como não demora nas compras, Das Dores pode o luxo de sentar-se à sombra de uma arvoreta.

De repente, Das Dores chora; súbito, Jô abraça a chorona.

― Nem sei dizer o que me dá, Jô. Vivo precisando do carinho das amigas. Sexta passada em Santos, lá estava eu no papelão de chorar que nem criança. Para a minha sorte, um cavalheiro de terno e gravata me adiantou o seu lenço ou eu nem acenaria direito à Dolores, Socorro e nossa prima Dagmar que zarparam pra Búzios.

As rolinhas, neste ínterim, somem no céu porque fuligem e barulho tomam inteirinha a Rua Direita.

 

Rodrigues da Silveira

Ibiúna, dia 19 de maio de 2024.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Donzela em apuros

 

Donzela em apuros

 

Menos pelos roncos, mais pela ansiedade de livrar-me das aranhas que, estorninhos em revoada, babam o casulo em que me transfiguram os pesadelos da realidade, acordei da pestana.

À vera, já que celular não come mosca de modo algum, fui acordado pela bateria de notificações dos e-mails recebidos.

De fato, chegaram oito, todos o mesmo e apenas um, cuja chamada era: A VERDADE SOBRE O SUMIÇO DA FELICIDADE.

Abri-o, e seu conteúdo era um áudio, no qual alguém falava de uma nota surgida em página policial de um jornal da Bulgária.

Se há jornais, há Bulgária! Tanto há que o topônimo aparece até no planisfério mais interativo que a internet permite acessar sem que, uma vez que anúncios animados obram por isso, seja cobrado uma pataca aos consulentes.

A voz disse que em Burgas foi lavrado o boletim sobre o ataque ao Khushiyon ka Jahaaj, navio de bandeira butanesa, ocorrido nas águas costeiras de Creta, nas cercanias de Zacros, ou Cato Zacro.

De quem seria essa voz?

Eu conhecia o timbre. Ela tinha marcado sotaque americano. Se me concentrasse, apesar da nota breve, era possível identificá-la.

Depois de tocá-la diversas vezes para que não alimentasse dúvida, a voz do narrador pertencia ao Marlon Brando.

Homessa!

Como a voz do Marlon Brando veio parar num áudio vinte anos após a sua morte? Neste mundão de minha nossa, existirão mistérios que a inteligência não tenha o destemor de convertê-los em realidade? Com uma chusma de satélites devassando a Terra, o Marlon Brando contar que um navio butanês tenha sumido sem deixar rastro no Mediterrâneo cheira mesmo a troço descabelado?

A garantir como bem pouco provável de ser inverossímil a narrativa, foram-me enviados mais três e-mails com a mesmíssima supracitada gravação.

Embora a fala sugerisse algum acento nordestino, o Marlon Brando ouvido bem parecia oriundo do Recôncavo ou do Jequitinhonha, quiçá um baiano de energia muito positiva pela mansidão da prosódia, como se ele estivesse sorrindo ao gravar, num alto-astral contagiante.

Não dei azar ao checar o fato n’O Patriota, cuja tradução automática é: Segundo uma autoridade do Departamento de Assuntos Marítimos, a embarcação Ship of Happiness, tendo por destino o Porto dos Patos, sumiu das telas dos controladores à altura do Corno de Tooxin.

Sem barca furada!

Se a felicidade são cama, fogão e geladeira, cinco mil compram.

 

Rodrigues da Silveira

Ibiúna, dia 16 de maio de 2024.

terça-feira, 14 de maio de 2024

Um centavo

 

Um centavo

 

A mãe manda que vá comprar pão, a filha obedece. Sempre que a mãe ordena, nem hesita. Se não é de questionar pedidos de adulto, da mãe, então, cada pedido é oportunidade para comprovar o tanto que a ama e venera, bem como a inveja.

Antes que o maninho se afobe, a garota pega o dinheiro. Sorrindo para si, atravessa a rua. Ignora que as buzinas a repreendam. Embora os cães não parem de latir, ela segue sorrindo para si.

Tem motivos para levitar, ela pensa.

Tão logo a declarem crescida, mandará nos filhos. Terá duas filhas e um menino. Por achar maravilhosa a casa em que vive, as suas filhas também nascerão antes do menino.

Quando as filhas começarem a ajudá-la, ficará brava e subirá a voz contra os enganos. O muito que possa, será educadora.

Pegará a vassoura, mostrará o certo, varrerá dos pés para adiante. Enquanto o sol não bater no quintal, deixará as camisetas penduradas pelos ombros. Usará uma colher de sopa para salgar o arroz na panela grande e a de café nos quatro dedos de água da abobrinha em rodelas. Apagará a luz ao sair de um cômodo, pois o ordenado assusta, fazendo que o vigésimo dia do mês anuncie a inadimplência ao vigésimo dia do próximo mês.

Para assegurar-se segura, feito mãe, mimetizará o exemplo.

Sorrindo, pede os pães. Com o troco nas mãos, a queijadinha pisca. Não é todo dia que uma queijadinha sabe ser tão simpática. A menina nem pisca, o doce está servido.

Abocanhando a queijadinha sem ligar de fazê-lo ali mesmo, diante do homem da padaria, a menina desencanta: sorri satisfeita. Uma vez que experimenta não se desculpar pela água na boca, a fazê-la querer mais uma, entretanto outra queijadinha lhe é negada.

O homem da padaria quer saber se a mãe dela teria autorizado que gastasse todo o dinheiro com queijadinhas.

Corada, a menina diz que pedirá à mãe. Com vozinha meio sumida, fala que, num pé, ela voltará. O novo sorriso é um até já.

Dito e feito, a toquinho de gente volta. Outra vez correndo, outra vez sem olhar para os dois lados, outra vez buzinam, freiam e latem. Outra vez a baixinha sorri a si mesma.

Uma vez que ela voltou com as notas que ele lhe havia entregue, o homem da padaria é todo sorrisos ao lhe apresentar a mais bonita das queijadinhas.

Mesmo que não volte para casa com um centavo sequer, o sorriso de gente feliz não dá à guria um ar de peralta, mas o de queridinha da mamãe.

 

Rodrigues da Silveira

Ibiúna, dia 14 de maio de 2024.

domingo, 12 de maio de 2024

Momento certo

 

Momento certo

 

De novo, abri a noite de sexta com pizza.

Comendo sem pressa, bebericando refri gelado, mastigando sem a ansiedade de trancar a entrada às minhas costas, a calma novamente não me abandonou.

Para permanecer em uma pizzaria lotada, precisei reaprender a não me fixar angustiado com ruídos, com crianças entre as mesas, comigo a me perseguir situado pela consciência.

Depois da última jornada no inferno, sobrevivi a ataques de pânico e à melancolia de arrastar-me ao silêncio. Pra que meses não virassem anos, tive que aprender a entender-me com o exílio que trago em mim. Apesar da voz que jamais se deixou domesticar, ainda que me abisme sem paraquedas, não me esborracha o chão do inferno.

Porque hábitos são agradáveis feito os vícios, pedi a primeira pizza depois que tomei a primeira garrafinha de guaraná.

Não matei a sede, acordei-a. E não era uma, eram várias. Não eram necessidades que precisavam ser satisfeitas, foram. Eram prazer sem borda recheada, com a dita cuja, porém, escandalosamente túrgida de catupiry.

Não saciei vontade alguma, escolhi a segunda pizza.

A de muçarela não me seduziu à portuguesa, mas na mesa ao lado comiam tão somente pizzas portuguesas, invejei-os.

No entanto, já bebericando o terceiro guaraná, pensei em prolongar a minha estada à sombra da Figueira do Conhecimento.

Se eu fosse consciente da sabedoria que me falta, levaria para casa algum resto do dinheiro, mas não me agrado com as sobras.

Para viagem, quis um brotinho, mais uma portuguesa.

À espera da pizza, troquei o refri por um pudim. Bastaram-me sete colheradas para o doce sumir do pratinho.

Novamente, fui à pizza porque me habituei a fazer da noite de sexta o momento certo para comer pizza.

Nem o psiquiatra nem a psicóloga incutiram em mim a necessidade de sair de casa porque sou um animal carente de socialização, porque a mente humana funciona melhor quando submetida a diferenças.

Posso muito bem ficar no escuro da sala, ouvindo música. Posso ir da Patética à Prélude à l’après-midi d’un Faune sem precisar por quais razões eu gosto tanto de navegar pelos mares da música.

Sou uma pessoa como outra qualquer.

Aprendi a não me censurar por tirar do caminho o que impeça de ir à pizza nas sextas. Peguei gosto de ir à pizzaria a três imóveis à direita. Já não me abatem o frio, a chuva, o calor, a rua vazia.

Pra ser sincero, o mais honesto é dizer que comer pizza toda sexta não é hábito, é peregrinação. Não vou lá só para que me vejam sozinho à mesa, largo a solidão em casa. Meio feliz e meio indiferente, não sou leão por devorar duas pizzas normais. Pizzas dão encarnação à alegria de viver, e eu sou louco por muçarela e calabresa.

De novo, como tenho conseguido fazer nos últimos cinco anos, abri o sábado sem a ressaca de sentir-me culpado por ter-me excedido um pouco, aquele tanto; certo mesmo é que foi só um lapso.

 

Rodrigues da Silveira

Ibiúna, dia 12 de maio de 2024.

sexta-feira, 10 de maio de 2024

Pedido de resgate

 

Pedido de resgate

 

Em respeito ao agendado, o funcionário chegou às oito, constatou que no poste havia ponto disponível, ele ligou uma ponta da fibra óptica na caixinha da rua, a outra foi jogada no telhado e esticada até descer pela lateral da sala, cuja parede foi furada para que eu passasse a me conectar diuturnamente à felicidade.

Pra que sua atuação fosse felizmente produtiva, não acrescentando banalidades à apresentação protocolarmente segura feita na chegada, eu cruzei as pernas.

― Preciso de pá e vassoura, senhor.

Na sacolinha que eu também lhe entreguei, ele jogou o pó.

― Que vergonha o que está ocorrendo no Sul, hein?

― Vergonha em que sentido?

― A enchente atingindo todo mundo, independente de ser governo ou trabalhador, e todo mundo é gente e gente tem que ser tratada igual, sem a política separando quem do bem e quem do mal.

― Estão dividindo assim?

― O que é isso, doutor? O senhor não está sabendo que as Forças Armadas não estão podendo ajudar?

― Mas eu vi na TV que elas estão ajudando, sim.

― Aposto que isso passou num desses canais que ganha dinheiro com fake news. Cadê o amor que tanto invocam? O zap informa a real. Então, um militar não tem família nem amigos pra socorrer?

― Olha, não estou em nenhum grupo de zap.

― Me desculpe, doutor, mas o senhor está desinformado. O Brasil do senhor não é o mesmo país em que eu vivo.

― Como é, existem dois Brasis?

― O Brasil da gente batalhadora não é igual ao Brasil de quem lucra com as lorotas que inventa. E o povo do Sul merece respeito.

Com a instalação completa, o rapaz pediu que eu ligasse a TV.

― Veja isso, doutor. A coitada da égua nesse telhado há dias, tendo que ser castigada pela fome. Sem água, sem dormir. A desgraçada só é culpada de ser montaria da Brigada.

― Mas, repare, há botes indo resgatar o bicho.

― Só que são bombeiros paulistas que estão agindo.

― Você tem certeza de que são paulistas?

― Tenho certeza, pois foi feito um pedido direto aos irmãos de São Paulo. Se não fosse o governador escutar a dor do coração evangélico da esposa do nosso líder, do verdadeiro presidente impedido de sentar na cadeira, não fosse isso, a égua já teria morrido.

O jovem desliga a TV assim que as imagens mostram o presidente sobrevoando uma área devastada pelas águas.

― Que insulto! O sujeito dentro de um helicóptero, ele tira a gravata e dobra a manga da camisa como se honrasse a gente honesta. Quem ele pensa que é? Ele foi posto no cargo e fica posando de líder legítimo.

Terminado o serviço, o funcionário entendeu por bem:

― Sendo o senhor uma pessoa de mente aberta, que não se deixa levar, eu lhe imploro que ore pelo Brasil.

Ligo a TV e os repórteres informam: o cavalo resgatado não é uma égua; ninguém sabe a quem pertença; pra evitar problemas ao colocá-lo no bote, o animal foi sedado; sendo cuidado por profissionais em um hospital veterinário de Canoas, o Caramelo está bem.

 

Rodrigues da Silveira

Ibiúna, dia 10 de maio de 2024.

terça-feira, 7 de maio de 2024

Pata na cara

 

Pata na cara

 

Estou irritado. Uma vez irritado, recolho-me. Prefiro escutar música a ouvir asneiras. Ponho os fones. Escolho o que escutar. Tento serenar a minha alma. Acredito que tenho uma alma para sossegar. Opto pelo crédito de que posso recolher-me à música que tranquilize.

Quando tocado à tranquilidade, a minha irritação é maior.

Meus pensamentos dão coices. Provocam-me as ideias. Um átomo muda de nível ou foge, combina-se a outro átomo. Que isso explique, entenderei a explicação. Razoável, embora me traduza em abstrações, vou na onda, entro no fluxo, torno-me outro. Naturalmente sou um novo elemento surgido por conta e obra da transfiguração.

Pela irritação que transforma, eu até mordisco os lábios.

Só de raiva, observo. Não espero que a minha frieza seja percebida como óbvia. Pode ser que minha indiferença seja atraente, e a atração traga confiança, que a pessoa cativada pela imagem que passo esteja persuadida a sorrir de volta.

Tal sorriso faz-me crer que sou compreendido. O meu amor-próprio não apresenta fissuras. Por inteiramente sereno, quero ajudar. Quando posso ajudar, não darei uma banana há quem precise. A quem precisa comer para não desmaiar, que a banana dada seja comestível.

Só de raiva, amo o próximo. Ouço-o, que ele tinha razão para ficar de boca aberta. Que há perigos e há traições. Mesmo quem ama pode apunhalar, sorrindo.

Só de raiva, debocho. Digo bobagens, sou insensível. Torno-me um sujeito que abraça, afaga, acolhe. Com espírito desarmado, minto. Sou cínico, dou dois reais a quem não pede a esmola. Não pelo valor, pelo gesto, sou descarado: vá, vagabundo, vá comer arroz, feijão e bife.

Pela raiva sentida, haja reação. Que a pessoa humilhada me dê um tapa. Só de raiva, reaja. Eu mereço ser estapeado.

Por amor ao próximo, choro. Que a comoção me permita entender o quanto careço de ser corrigido. Ao ser estapeado, que eu sofra, sinta a dor que se volta contra mim. Que eu preste atenção em quem me faz chorar — por amor, não pela raiva.

Que o amor ao próximo tire de mim a propensão ao patético, que o meu choro seja discreto, pouco espalhafatoso, nada homérico. Dentro de mim, porém, Leda precisa do Cisne, Narciso de Eco, e Troia conta com o Cavalo. E o próximo ensine o amor ao próximo.

E amarei quem chora, quem pede ajuda, quem dispense meu amor, porque serei infantil, desobediente, entrarei de cabeça, subirei respirar quando os pulmões suplicarem por oxigênio.

Só de raiva, furarei um poço, regarei o bananal com a água brotada e darei fruta a quem pedir, a quem melindrado não peça, a quem a leve à gente, ainda, não vinda.

Por amor, beberei da água parida pela montanha.

Solidário, fraterno, amorosamente muito racional, uma vez que não sou aquele que não sou, oxalá, por escutar meu coração, serei sereno, e muito adulto, amarei as suas patas, transubstanciado Kafka.

 

Rodrigues da Silveira

Ibiúna, dia 07 de maio de 2024.

domingo, 5 de maio de 2024

Travessura inocente

 

Travessura inocente

 

Se desejasse agradar o diabo, eu mesmo continuaria como estava, não pondo em dúvida que a performance é realista, que emulo estátua que porventura a minha memória preserva sem que me recorde a que personagem represente ou onde esteja erguida.

Evidentemente lasso, estou sentado. Sem tocar no copo, deixando a cerveja esquentar, vejo a TV. Peço que troquem o meu copo. Mando trazerem outra garrafa. Torço, que não mudem de canal.

Em Copacabana, montam o palco no qual uma famigerada estrela se apresentará para um milhão e meio de não pagantes. A mulher tem sessenta e cinco anos, quarenta de estrada pop, e não sei lá quantos chicotinhos na bolsinha de látex.

Bem percebo pelo alvoroço, a danada não rebola só pelo prazer de sassaricar a sua graça nas areias tupiniquins, a musa, imaculadamente sapeca, sabe se manter estimulante à idolatria.

Mamma mia! Que entusiasmo colossal será rebolar para um mar de fãs. Quando rebolo, só rebolo pro espelho. E olhe lá, bambina.

Não é nenhuma aventura contar que pensava na apresentação da bomba loira quando Luisinho veio interpor sua barbicha grisalha entre as minhas retinas vidradas e a TV.

Viver é ser interrompido por inconveniências.

Por inconveniente, o meu amigo sentou sem pedir licença, pôs mais sal na porção que nem se acanhou de beliscá-la e passou a elogiar-se das coisas boas que andava fazendo desde manhã.

Sentar pegando da batata alheia e anunciando o quanto era irritante todo aquele circo em torno daquela americana botoxilizada, isso tinha a cara do Luisinho, cujo maior talento é criar rusgas à toa.

Seria bom se não o contrariasse, que ele chegou pilhado. Ainda que reze mesmo sem se ajoelhar, ele é mestre em contestar.

Ele não suporta vê-la na pele de vestal: tão carnuda, a virgem dos lábios bombados, a pouco zen, amante de carne malpassada.

Ao me ver sentado sozinho, bebendo sozinho e comendo sozinho a porção grande de batata frita, o amigo preocupado com a saúde deste camarada acha por bem agir.

A ele importa: que eu dê vazão às minhas angústias, ou não estaria isolado; que não me faça avesso às minhas mágoas, ou estaria sóbrio; e, sobremodo, que não lhe sejam negadas as batatinhas.

Não o impeço que coma, beba e tagarele. Nem assim o amigo baixa a bola, uma vez que veio investido de ranheta a fim de criticar tudo que ache certo espinafrar.

Depois que meu irmãozinho foi-se embora porque a porção acabou, Aristeu junta-se a mim na mesa escondida.

Aristeu aposta que a Madonna não fará o espetáculo no Rio, que o buchicho é publicidade para artista em fim de linha, que adiarão o show por conta da calamidade gaúcha, que haverá de ter um juiz que proíba imoralidades na TV.

Por decadente, me extravia a indecência? Na impureza de me atirar a quem seduz à sombra, não me sinto iluminado?

Louco de batata, like a virgin, sacudo a minha cintura dura.

 

Rodrigues da Silveira

Ibiúna, dia 05 de maio de 2024.